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Impactos da tributação para abertura do mercado de gás natural

CAMILA GALVÃO e ISABELA CANTARELLI, Jota
Análise de 4 questões que impactam negativamente o desenvolvimento do mercado de gás natural no Brasil.

O Governo Federal lançou, neste ano, o Programa “Novo Mercado de Gás”, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, que tem por objetivo a formação de um mercado de gás natural dinâmico e competitivo, auxiliando o desenvolvimento econômico do país1.

O programa visa à pulverização de agentes no mercado até então concentrado em um único agente dominante, a Petrobras, que desempenhava com protagonismo a maior parte das atividades relacionadas à cadeia do gás natural. Diante dessa nova realidade, observa-se o surgimento de novas relações jurídicas entre diversos atores que atuam em todos os elos da cadeia do gás natural, bem como o surgimento de novos institutos jurídicos que não eram verificados na estrutura até então verticalizada de mercado, caracterizada pela predominância de um único agente.

Nesse contexto, faz-se necessária, também, a adaptação do sistema tributário brasileiro para acompanhar essas novas relações jurídicas. Dada a relevância da temática para o desenvolvimento eficaz do mercado de gás natural, a análise dos aspectos tributários foi objeto de um dos 9 subcomitês de trabalho da iniciativa Gás para Crescer, lançada anteriormente ao Novo Mercado de Gás para debater propostas ao adequado funcionamento do mercado de gás natural, bem como é indicada como um dos 4 (quatro) pilares do Novo Mercado de Gás (“remoção das barreiras tributárias”)2.

O objetivo deste texto é apontar algumas questões cruciais que impactam negativamente o desenvolvimento do mercado de gás natural no Brasil.

Tais pontos ganham especial relevância à luz das novas relações jurídicas que surgirão com a entrada de novos agentes na cadeia do gás natural, os quais atuarão no desempenho de atividades antes protagonizadas pelo agente dominante.

Quatro dos principais aspectos que impactam o progresso da abertura de mercado, a nosso ver, são: (i) a incompatibilidade dos regimes de incidência do ICMS na cadeia do gás natural e da energia elétrica; (ii) os conflitos de competência entre entes políticos para cobrança de impostos relacionados a atividades da cadeia do gás natural; (iii) a falta de uniformidade entre a legislação dos Estados para incidência do ICMS sobre o gás natural e (iv) o tratamento do transporte de gás natural. Trataremos de cada um deles separadamente, a seguir.

1. Incompatibilidade dos regimes de incidência do ICMS na cadeia do gás natural e da energia elétrica
O gás natural é um importante insumo para a geração de energia elétrica e vem conquistando bastante espaço na diversificação de fontes energéticas do País. A geração térmica é vista como um considerável elemento para diversificar o mercado de energia limpa e também como a mais viável âncora para permitir o desenvolvimento do mercado consumidor de gás natural no País.

Entretanto, a incompatibilidade dos regimes de incidência do ICMS aplicáveis ao gás natural e à energia elétrica resulta em distorção e cumulatividade desse imposto na cadeia de fornecimento, impactando o preço da energia elétrica gerada a partir desse recurso.

Enquanto o gás natural segue a tributação regular prevista para o ICMS, incidindo em cada atividade da cadeia (inclusive no transporte), no Estado de origem, a energia elétrica possui um regime constitucional particular orientado pelo “princípio do destino”, que é verificado pela imunidade nas operações interestaduais prevista no artigo 155, §2º, inciso X, ‘b’, da Constituição Federal. Assim, pode-se dizer que o ICMS sobre o gás natural incide na origem e o ICMS sobre a energia elétrica incide no destino.

Essa diferença de regimes frequentemente gera situações de acúmulo ou exigência de estorno de créditos de ICMS no nível da Usina Termoelétrica, com consequente quebra da cadeia de não cumulatividade e impacto no preço da energia elétrica. Tais situações de distorção podem representar relevante desvantagem à geração térmica movida a gás natural, se comparada com outras fontes energéticas como a água, o sol e o vento, que não são tributáveis pelo ICMS.

2. Conflitos de competência entre entes políticos na cobrança de impostos relacionados a atividades da cadeia do gás natural
O surgimento de novas relações jurídicas entre agentes do mercado, em regra, faz crescer o anseio arrecadatório dos entes políticos. E, tendo em vista que o sistema tributário brasileiro é marcado por uma rígida repartição constitucional de competências, há diversas situações que desencadeiam conflitos de competência entre dois (ou mais) entes políticos, que se entendem competentes para tributar determinadas atividades.

O ICMS é pensado e concebido para acompanhar o fluxo físico das mercadorias, o que se revela incompatível com a característica essencial do gás natural de bem fungível, que não segue necessariamente um fluxo físico determinado. Essa peculiaridade do gás natural acentua, ainda mais, o surgimento de conflitos de competência.

Dentre as situações identificadas que podem desencadear tais disputas federativas, destacamos as seguintes: (i) conflito de competência entre Estados para a cobrança do ICMS incidente na importação de gás natural e (ii) conflito de competência relacionado à terceirização de atividades exercidas na cadeia do gás natural, que atualmente são concentradas no âmbito do agente dominante de mercado.

O primeiro caso decorre justamente da desvinculação entre o fluxo físico e jurídico observada nas operações com gás natural. Nesse caso, a disputa pela arrecadação instaura-se entre o Estado em que está localizado o destinatário físico do gás natural e o destinatário jurídico do mesmo produto.

No segundo, o conflito surge da terceirização de atividades que, até o presente momento, concentra-se no agente dominante. Contudo, no Novo Mercado de Gás, serão terceirizadas e contemplarão novas relações jurídicas – trata-se de atividades como o processamento e a regaseificação do gás natural.

Nessa hipótese, haverá o risco de os Munícipios enquadrarem tais atividades no conceito de “beneficiamento” (previsto no item 14.05 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/03), qualificando-as como prestação de serviço tributável pelo ISS. Por outro lado, as mesmas atividades também podem ser entendidas como “industrialização por encomenda”, embasando o entendimento dos Estados de que são sujeitas ao ICMS. A incerteza quanto à qualificação jurídica dessas atividades é um pano de fundo fortíssimo para conflitos de competências no âmbito tributário.

É bem verdade que, atualmente, a jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal3 contribui para reduzir o nível de incerteza quanto a esse último conflito indicado. Isso porque, o Tribunal tem entendido que as atividades de industrialização desenvolvidas no decorrer da cadeia produtiva são consideradas insumos para o processo industrial e, por isso, sujeitas ao ICMS. Por sua vez, caso o produto resultante da industrialização seja destinado a consumidor final, a atividade será tributada (i) pelo ISS, se personalizada ou (ii) pelo ICMS, caso constitua atividade massificada. Por isso, o panorama jurisprudencial aponta para a incidência do ICMS nas atividades relacionadas a cadeia do gás natural.

Ademais, deve-se ressaltar que referidos conflitos de competência muitas vezes trazem reflexos nas obrigações acessórias a serem cumpridas pelos contribuintes, gerando indefinição sobre o adequado procedimento a ser seguido.

3. Falta de uniformidade entre a legislação dos Estados para incidência do ICMS sobre o gás natural
Uma outra questão que merece atenção é a falta de uniformidade no tratamento tributário relativo ao ICMS previsto na legislação dos Estados, especialmente no que diz respeito a operações envolvendo gás natural.

Diante das peculiaridades inerentes a esse produto, a falta de uniformidade de tratamentos aponta para um cenário de bastante complexidade e insegurança jurídica para as empresas atuantes no setor.

Nesse sentido, destacam-se (i) a diversidade de carga tributária aplicável ao gás natural; (ii) os diversos tratamentos em virtude de regimes especiais concedidos em situações específica; (iii) as incertezas relativas às normas que atribuem responsabilidade por substituição tributária e (iv) a diferença no tratamento dos créditos de ICMS relacionados à não cumulatividade.

A falta de uniformidade prejudica o desenvolvimento das comercializadoras de gás natural, agentes tidas como essenciais para conferir maior liquidez ao mercado. Dentre outras razões, o impacto se dá em função da potencial geração de créditos acumulados, que pode surgir da diferença entre a carga tributária aplicável nas aquisições e nas vendas da comercializadora. Como exemplo, caso uma comercializadora efetue compras em operações internas tributadas pela alíquota de 18% e realize vendas interestaduais, tributadas a 12% ou 7%, há uma forte tendência ao acúmulo de créditos de ICMS.

4. Tratamento do transporte de gás natural e conclusões
Até o presente momento, a rede de transporte de gás natural brasileira é utilizada por somente um carregador, qual seja, a Petrobrás, agente dominante mencionado acima. Com a abertura de mercado, novos agentes passarão a integrar a rede de transporte como carregadores, utilizando-se dessa infraestrutura e fazendo com que novas relações jurídicas surjam também no contexto do transporte.

Nesse cenário, diante do fato de que o gás natural é orientado pelo fluxo jurídico (sobretudo em virtude da sua característica mais essencial – a fungibilidade), bem como que o conceito de transporte tradicionalmente concebido para fins de incidência do ICMS é bastante relacionado ao fluxo físico de mercadorias, ajustes na legislação para viabilizar a presença de múltiplos carregadores na rede são bastante necessários.

A pretensão principal relacionada ao transporte é atingir o desejado Modelo de Entradas e Saídas que, em linhas gerais, trata-se do modelo de contratação de capacidade de transporte que permite ao usuário contratar o ponto de Entrada (injeção de gás natural) e o ponto de Saída (retirada de gás natural) de maneira autônoma.

Veja-se que a definição desse modelo foge da regra intrínseca ao conceito de transporte relacionado ao ICMS: levar uma mercadoria de um ponto específico a outro ponto específico, traçando um trajeto determinado.

Diante disso, a legislação tributária já tem contemplado alguns ajustes para permitir a implementação desse novo modelo de contratação de capacidade de transporte, principalmente no âmbito do CONFAZ, com foco inicial nas obrigações acessórias (tais como o Ajuste SINIEF º 03/2018, o Ajuste SINIEF nº 17/2019 e ATOS COTEPE a eles relacionados).

Espera-se que a legislação tributária continue a avançar, adaptando-se com vistas a permitir o adequado funcionamento do sistema de transporte de gás natural.

Essas breves indicações de controvérsias que passaram a ter relevância em um cenário de novas relações jurídicas e podem impactar a abertura do mercado de gás natural, bem demonstram que o direito tributário deve sempre acompanhar os avanços do mercado, incidindo da maneira mais justa e adequada à luz do regime tributário traçado no plano constitucional e infraconstitucional, de modo a evitar ineficiências que inibam o crescimento econômico do Brasil.

1 http://www.mme.gov.br/web/guest/novo-mercado-de-gas

2 São pilares do Novo Mercado de Gás: Promoção da concorrência; Harmonização das regulações estaduais e Federal; Integração do setor de gás com setores elétrico e industrial e Remoção de barreiras tributárias.

3 Nesse sentido: Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.389/DF, relator Ministro, julgado em 13.04.2011. Joaquim Barbosa ; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 803.296/SP, relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 09.04.2013.

CAMILA GALVÃO – sócia de Machado Meyer Advogados.
ISABELA CANTARELLI – advogada de Machado Meyer Advogados.

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