RIO – A Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) investiga a paralisação de processos e outras irregularidades envolvendo juízes e peritos que atuam em varas empresariais e de fazenda do estado. Em uma única vara, um relatório sigiloso assinado pelo corregedor Bernardo Garcez e obtido pelo GLOBO identificou mais de 3,3 mil processos de execução fiscal com atrasos que chegavam, no fim de 2019, a mais de dois anos. O valor dos débitos cobrados já beirava os R$ 260 milhões em junho deste ano.
O relatório, destacou uma amostra de 40 processos de execução fiscal. A maioria deles se concentra na 11ª Vara de Fazenda Pública, responsável por ações de execução fiscal do governo do estado. Seu titular, o juiz João Luiz Amorim Franco, foi alvo de busca e apreensão na Operação Erga Omnes, feita pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ) no fim de abril. Segundo o relatório da corregedoria feito em setembro do ano passado, Amorim Franco deu prosseguimento em uma única data, 23 de agosto de 2019, a 3.399 processos, que “só foram encaminhados à digitação 2 (dois) dias após a ação fiscalizatória desta Corregedoria”, disse Garcez no relatório.
Detalhando ainda mais: 39 dos 40 processos tiveram a citação das partes determinada entre 14 e 16 de agosto de 2017, mas só foram enviados para a etapa de digitação dos documentos de citação em 23 de agosto de 2019 – mesma data em que, segundo Garcez, outros 3.360 processos com atrasos similares foram enviados. Para chegar ao valor de R$ 260 milhões (valor da soma das execuções fiscais, mais honorários), o GLOBO consultou os 39 processos destacados por Garcez no portal da dívida ativa do estado do Rio. O rol de empresas alvo das execuções incluía principalmente o ramo do comércio de varejo ou atacadista, como lojas de calçados e de roupas, óticas, empresas de alimentação e de material hospitalar.
O corregedor também pediu à Polícia Federal que investigue relações mantidas entre Amorim Franco e outros magistrados com peritos judiciais, entre eles Charles Fonseca William, alvo da Lava-Jato do Rio no fim do ano passado. Na Operação Erga Omnes, o MP-RJ afirmou que Charles William, em depoimento, disse ter recebido das mãos de Amorim Franco uma cópia do relatório sigiloso da corregedoria. Segundo o relatório, há “indícios de evolução patrimonial incompatível com a renda” no caso de Amorim Franco. O perito, que foi encontrado com o documento ao ser preso pela Lava-Jato, firmou acordo de delação premiada e foi solto em março.
“Conclui-se que existem milhares de feitos relativos a Execuções Fiscais onde a citação foi determinada pelo juiz João Luiz Amorim Franco, há meses e até anos. No entanto, os processos permanecem aguardando esta única providência, como se não bastasse tais feitos só foram encaminhados à digitação 2 (dois) dias após a ação fiscalizatória desta Corregedoria”, escreveu o corregedor Bernardo Garcez.
Amorim Franco negou ter entregado o relatório sigiloso da corregedoria a Charles William ou ter atuado para obstruir investigações. O magistrado disse ainda não ter conhecimento de atividades ilícitas de Charles William no período em que o nomeou como perito, e lamentou a “verdadeira devassa” promovida pela corregedoria. Sobre os processos paralisados, ele alegou que “a 11ª Vara de Fazenda Pública sempre teve problemas em razão do enorme número de processos e poucos funcionários” e que só tomou conhecimento da investigação da corregedoria no fim de outubro, após ter dado movimento a mais de 3,3 mil processos.
Uma das ações paradas no gabinete de Amorim Franco, aberta pelo estado do Rio contra a Refinaria de Petróleos Manguinhos S.A. (Refit), cobra atrasos no recolhimento de ICMS no valor atualizado de R$ 206,6 milhões, somando o cálculo de honorários no fim de junho. Em outros 39 processos destacados pelo corregedor, que só teriam sido movimentados após a fiscalização no ano passado, o valor dos débitos chega a R$ 53,3 milhões. Em quatro deles, o prazo para prescrição foi suspenso no início deste ano, após os alvos da cobrança terem sido citados.
A Refit argumentou, sem detalhar o mérito do processo parado na 11ª Vara de Fazenda Pública, que a execução fiscal de R$ 206,6 milhões “afronta decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal” no julgamento da Repercussão Geral 520, em maio. Na ação em questão, o STF decidiu que o recolhimento de ICMS deve ser feito somente pelo estado que é destinatário final de determinado produto, e não pelo intermediário. “Neste cenário, a Refinaria espera que a Justiça reconheça a ilegalidade praticada pelo estado na lavratura do auto de infração e consequentemente anule integralmente o débito fiscal em questão”, informou a empresa. Processos judiciais e mesmo administrativos sobre onde deve ser recolhido o ICMS de empresas são comuns nos tribunais do país.
As ações, a maioria por falta de recolhimento de ICMS, também envolvem pequenas e médias empresas, algumas com aparentes dificuldades financeiras. São os casos da Limpapel RJ Comércio de Papéis, de Volta Redonda, executada em R$ 17,4 milhões, e da Select Comércio e Representações, administradora de uma loja de roupas em Ipanema, na Zona Sul, e alvo de cobrança de R$ 8,6 milhões. A Limpapel foi liquidada em maio de 2018, segundo informações da Receita Federal. A Select foi levada a leilão, em setembro, em uma ação de despejo por dívidas de IPTU e aluguel no valor de R$ 175 mil.
No relatório, em que cita “uma série de coincidências entre os investigados, sejam magistrados, familiares ou auxiliares da Justiça com atuação na 11ª Vara de Fazenda Pública e em outras unidades judiciárias”, Garcez pediu à Polícia Federal que informe o histórico de entradas e saídas no país do magistrado João Luiz Amorim Franco e sua mulher, assim como dos auxiliares de justiça Charles William, Walter Tardim Neto e Marco Antonio Reis Gomes e suas respectivas mulheres, “a fim de verificar se estes mantêm rotinas de viagens em conjunto”.
Walter Tardim, cunhado de João Luiz Amorim Franco, é o terceiro perito com mais atuação em casos na 11ª Vara, com 104 designações, segundo o relatório do corregedor. Marco Antonio Reis Gomes era o segundo, com 170 casos. O perito Charles William, acusado de ter recebido ao menos R$ 4,9 milhões de empresas de ônibus para emitir laudos favoráveis nos casos em que era assistente técnico, afirmou em depoimento ao MP-RJ que foi avisado por Amorim Franco que seria “substituído” por Marco Antonio Gomes após, ainda segundo o delator, ter dito que não continuaria a ajudar o magistrado com a venda de sentenças.
Através de seus advogados, Amorim Franco afirmou que não há impedimento na legislação para designar o próprio cunhado como perito em sua vara, mas disse ter acatado a determinação da corregedoria para não mais nomear Tardim. Já o corregedor Bernardo Garcez informou que não comentaria a investigação, que está sob sigilo, e disse ainda que a corregedoria, “que tem sido severa na apuração de irregularidades, tem o dever de preservar a presunção de inocência de todos”.
O relatório da corregedoria também apontou que Marco Antonio é síndico de um edifício comercial no centro do Rio onde ele próprio e os magistrados titulares dessas varas manteriam empresas de fachada, usadas para pagamentos ilícitos envolvendo sentenças judiciais. A mulher de Amorim Franco figura como sócia de uma empresa registrada no local. O juiz titular da 7ª Vara Empresarial, Fernando César Viana, que também foi alvo de busca e apreensão na Operação Erga Omnes em abril, tem uma empresa registrada numa sala comercial em nome de Marco Antonio, segundo o relatório. Já o magistrado da 3ª Vara Empresarial Luiz Alberto Carvalho Alves seria proprietário, ainda de acordo com a corregedoria, de uma sala comercial no mesmo edifício de uma empresa representada por Marco Antonio – que também é sócio de uma firma de contabilidade sediada neste prédio.
Procurado, Fernando Viana disse ter relação “estritamente profissional” com Marco Antonio e afirmou não ter conhecimento sobre as empresas de magistrados no mesmo endereço. A defesa de Marco Antonio Gomes afirmou que o administrador judicial prestou serviços contábeis dentro dos parâmetros legais aos magistrados, e disse que ele “apenas intermediou a venda de uma sala” a Luiz Alberto Carvalho Alves, com uma procuração da proprietária do espaço. Segundo a defesa, Marco Antonio não tem “nenhuma rotina de viagens” com os magistrados e peritos citados e atua com a venda e aluguel de imóveis para diversos clientes “independentemente de serem ou não magistrados, como qualquer outro corretor”.
A defesa de Luiz Alberto Carvalho Alves disse que a investigação da corregedoria é uma perseguição a todos os juízes de varas empresariais, “conduzida de forma tendenciosa e fantasiosa”, e afirmou ter levado o caso ao conhecimento de “autoridades superiores que já instauraram o devido procedimento” para avaliar os atos do corregedor Bernardo Garcez. A defesa de Charles William informou que não irá se manifestar.