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Agências reguladoras e interferência política: o que fazer?

Uma vez fortalecido, o corpo técnico da agência pode constituir uma barreira interna da agência à interferência política

Crédito: unsplash

Dando continuidade à série de artigos sobre os resultados da pesquisa elaborada pelo Centro de Regulação e Democracia do Insper em parceria com o JOTA, neste artigo analisamos como as agências reguladoras são percebidas pelos agentes atuantes no mercado de infraestrutura, especialmente transportes e mobilidade. Nesses setores, as agências podem ser federais, estaduais e municipais, conforme seja a titularidade dos serviços concedidos.

O tema se torna ainda mais atual com o debate em torno do PL 529/2020 de iniciativa do governador de São Paulo em apreciação na Assembleia Legislativa[1]. Ao exigir que as decisões de suas diretorias colegiadas passem por análise do poder executivo central, caso possam gerar encargo, ônus financeiro ou obrigação ao Estado de São Paulo, o artigo 36 do PL coloca em xeque a autonomia decisória das agências estaduais, Artesp e Arsesp[2].

A comunidade acadêmica se insurgiu contra essa tentativa e reflexões sobre a necessidade e o papel das agências voltam à tona no debate nacional. Mas, afinal, qual é a percepção dos atores desse ambiente regulatório (regulados, órgãos de controle e investidores e poder executivo) acerca das agências reguladoras?

As agências são entidades integrantes da administração pública indireta de um ente federativo, submetidas ao regime autárquico especial. O caráter especial que as difere de outras autarquias dentro da estrutura administrativa é a independência administrativa, autonomia financeira, ausência de subordinação hierárquica em relação ao chefe do poder executivo ao qual está vinculada e mandatos fixos e não coincidentes de seus dirigentes.

Esses são nomeados pelo chefe do Poder Executivo, após serem sabatinados pelo poder legislativo. Os mandatos dos dirigentes são intercalados entre si e não coincidentes com os mandatos dos chefes do Poder Executivo, de maneira que o governante inicia o seu mandato tendo nas agências dirigentes indicados pelo mandatário anterior. Por este desenho institucional, procura-se assegurar alguma separação entre políticas de estado (agências técnicas) e políticas de governo (Poder Executivo central).

Na prática, contudo, esta separação é muito difícil de ocorrer. Há evidências na literatura internacional especializada que a interferência política do Poder Executivo ocorre na regulação, mesmo quando agências e outros órgãos reguladores são formal e institucionalmente independentes[3].

Os incentivos dos governos em influenciarem ou tentarem interferir no processo regulatório são bastante fortes já que a autonomia delegada aos órgãos reguladores pode ser usada para perseguir resultados que eventualmente possam prejudicar seus interesses políticos. Assim, a influência nas agências é exercida por algum canal institucional acessível ao Poder Executivo naquele momento, por mais restrita que seja a atuação dos governantes em termos legais.

Portanto, a questão fundamental neste contexto não reside na existência ou não da interferência política. O ponto crucial é que esta potencial (ou até inevitável) interferência política não afete a credibilidade das agências, tampouco do sistema regulatório. Isto é essencial para garantir o bom funcionamento, ou até a viabilidade dos serviços públicos regulados. Contudo, não é assim que tem ocorrido nas agências reguladoras, de acordo com as percepções dos agentes participantes do ambiente regulatório brasileiro coletadas na pesquisa Insper-Jota.

Quando consultados sobre o tema, as concessionárias, os investidores institucionais e os financiadores responderam que consideram haver interferência do Poder Executivo e do Poder Legislativo na atuação das agências nacionais e estaduais, com respostas que demonstraram ênfase para uma alta interferência na percepção dos consultados. As interferências são percebidas como negativas por todos os consultados, inclusive pelo Poder Executivo que poderia considerar necessária sua atuação para correção de eventuais falhas na execução das funções regulatórias pelas agências, levando em conta a tensão entre essas duas esferas administrativas.

E mais, as percepções dos consultados confirmam que as interferências políticas nas agências reguladoras variam no tempo, apesar de as respostas não terem sido conclusivas em identificar um padrão sobre a existência de um grau de influência maior ou menor a depender de eventos como mudança de gestão política liderada por partidos políticos rivais (2003-2004) ou até mesmo o início da Operação Lava Jato iniciada em 2014.

De maneira geral, há percepção de um aumento nas duas últimas gestões presidenciais das interferências políticas e alguns entrevistados se referiram ao aparelhamento das agências por partidos políticos, como crítica à ausência de capacidade técnica dos dirigentes nomeados nos últimos anos nas agências federais.

Pelo menos três aspectos da interferência política nas agências foram identificados nos resultados, os quais podem colaborar para as reflexões sobre as agências reguladoras.

O primeiro aspecto se refere à percepção dos atores do ambiente regulado sobre a interferência política. A interferência política do Governo Federal/Estadual ou do Congresso Nacional/Assembleias foi indicada pelos respondentes como o principal motivo para a avaliação negativa da atuação e das decisões das agências reguladoras, afetando a decisão de investimento dos agentes privados. Os resultados mostram que há um reconhecimento de que a interferência política é uma realidade no âmbito regulatório nacional. Nem mesmo os entrevistados do então Ministério dos Transportes, Portos e Aviação e da Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo tiveram desconforto em confirmar tal interferência, revelando certa acomodação dessa falha no ambiente regulatório e tornando sua mudança difícil no curto e médio prazo.

Da perspectiva da iniciativa privada, a interferência política nas agências é vista como uma restrição adicional a sua atuação, fator que incrementa os custos de transação a todos participantes neste setor. Buscam superá-la de maneira paradoxal: ao mesmo tempo em que se advoga por maior independência das agências, faz-se uso de conexões políticas que facilitem o acesso ao poder público (agência ou Poder Executivo central). Para alguns dos consultados, dificilmente seria possível eliminá-la por completo diante das características dos papéis executados pelos atores.

O resultado nos leva a refletir sobre os motivos para entender a interferência política nas agências e o comportamento da iniciativa privada, mesmo diante da criação de instâncias decisórias técnicas, destinadas a conferir segurança jurídica às relações de longo prazo estabelecidas com a iniciativa privada. Sua implementação não teria sido efetiva? As indicações são realizadas a partir de interesses político-partidários? As decisões são pautadas por outros interesses que não o dos usuários e de todas a coletividade? Sem a pretensão de encontrar respostas às perguntas, os outros dois aspectos podem colaborar para reflexões sobre o amadurecimento das agências no contexto brasileiro.

O segundo aspecto é a forma de manifestação concreta dessa interferência política. Na percepção de todos os consultados, a interferência do Poder Executivo nas agências reguladoras se manifesta no contingenciamento dos orçamentos das agências e principalmente nas nomeações dos dirigentes com vinculações político-partidárias. Quanto à questão orçamentária, houve consenso acerca do fato de que as agências não usufruem de autonomia para realizar gastos, investir em infraestrutura e capacitar pessoal.

Foi tema de discussão na I Jornada de Direito Administrativo realizada em agosto de 2020, proposta de enunciado que visava garantir às agências ampla autonomia no uso de recursos advindos do pagamento das taxas regulatórias, proibindo o uso desses recursos para fins de equilíbrio fiscal. Muito embora não tenha sido aprovado, por se tratar de tema não modulável por simples interpretação legal, a discussão ocorreu no âmbito do Centro de Estudos Jurídicos do STJ com a participação de Ministros do tribunal, magistrados de outras instâncias e especialistas na área[4]. Assim, o tema tem conquistado adeptos que sustentam maior independência financeira das agências como forma de viabilizar sua autonomia decisória em relação ao poder executivo central.

A nomeação de dirigentes, por sua vez, para atuação vinculada a orientações político-partidárias ou com perfil que carece de qualificação técnica para o cargo foi indicada, pelos consultados, como exemplo concreto de interferência política. Contudo, não se pode deixar de mencionar que, ao lado da qualidade das indicações feitas, está também a omissão do Poder Executivo em indicar dirigentes para as agências mantendo cargos vagos por tanto tempo que se desconfigura ferramenta importante para a garantia da autonomia das agências[5]. Na prática e, sobretudo no âmbito federal, os mandatos dos dirigentes se tornaram coincidentes.

A Lei das Agências Reguladoras (Lei Federal 13.848/2019) tenta prever remédios para evitar ou minimizar as interferências políticas. Nesse sentido, há uma ampla lista de vedações às indicações para conselho diretor ou diretoria colegiada (recém incluído art. 8º-A da Lei Federal 9.986/2000) e também comportamentos proibidos pelos seus integrantes (recém-incluído art. 8º-B da Lei Federal 9.986/2000). Além disso, a Lei Federal 13.8482019 prevê como alternativa à vacância dos cargos dos dirigentes a criação de listas de substituição.

A lista é formada por três servidores da agência ocupantes de cargos como superintendente, gerente-geral ou equivalente hierárquico, indicados pelo Presidente da República a partir de uma lista elaborada pela diretoria colegiada ou conselho diretor. Não havendo designação até 31 de janeiro do ano subsequente à indicação, a qual é feita pela diretoria colegiada ou conselho diretor, o superintendente com maior tempo de exercício na função exercerá o cargo vago interinamente. Note-se que o mesmo substituto não exercerá interinamente o cargo por mais de 180 dias contínuos (redação do art. 10 da Lei Federal 9.986/2000). Opera-se, na prática, verdadeiro teste dos servidores indicados para sua atuação no órgão colegiado permitindo intensificar as relações políticas que eram boas ou estremecer as relações que já eram ruins.

O terceiro aspecto que os resultados demonstram é que a reconhecida interferência política não foi suficiente para retirar a credibilidade das equipes técnicas das agências. Apesar de uma percepção em geral negativa sobre a atuação das agências, as áreas técnicas ganham destaque com viés positivo, se considerado o problema da interferência política. Na percepção dos consultados, elas apresentam forte presença no processo de tomada de decisão regulatória sobre os mais variados e relevantes temas.

Essa percepção se revela na distribuição das competências das respectivas áreas técnicas, a quem cabe na maioria das vezes instruir os processos para a posterior decisão dos dirigentes em regime de colegiado. Esse é o caso, por exemplo, da Superintendência de Regulação Econômica de Aeroportos da ANAC, a quem compete propor à Diretoria Colegiada prorrogação da outorga para a exploração de infraestrutura aeroportuária (art. 41, I, “c” do anexo à Resolução 381/2016). Em algumas hipóteses, decisão administrativa sobre aspecto relevante para o bom andamento da concessão fica a cargo da área técnica como, por exemplo, elaboração e implementação de proposta de reajuste e revisão de tarifas da exploração das concessões rodoviárias federais, cuja competência é da Superintendência de Exploração de Infraestrutura Rodoviária da ANTT (art. 46, XIII, do anexo I da Resolução 5.810/2018).

Dentre aqueles que têm atuação direta com as agências reguladoras, as respectivas áreas técnicas foram consideradas figuras importantes no processo decisório das agências. Um dos dirigentes das agências federais afirmou que, em sua experiência, 99% dos casos levados à apreciação do colegiado seguiram a opinião recomendada pela área técnica, com apenas alguns poucos casos particulares que fugiram desse padrão. Esta resiliência a apelos políticos das agências reguladoras evidenciada nas respostas desta pesquisa, encontram confirmação na literatura especializada[6].

Concessionárias e investidores ou tinham opinião positiva ou eram indiferentes. A opinião mais destoante foi originária do Poder Executivo central que entendeu ser necessária ainda maior capacitação dos profissionais de carreira. Vale lembrar que a capacidade técnica depende não apenas de recursos financeiros para custeio de cursos e treinamentos especializados, como também planos de carreiras atraente dos melhores talentos que devem decorrer de uma reforma administrativa mais ampla.

Uma vez fortalecido, o corpo técnico da agência pode constituir uma barreira interna da agência à interferência política, inclusive como solução para as indicações de cunho político para o cargo de dirigente das agências. Contudo, para que ele seja capaz de neutralizar essa interferência, é necessário fortalecê-lo por meio de instrumentos decisórios baseados em evidências (como as Análises de Impacto Regulatório), capacitação e planejamento estratégico.

Porém, não sejamos ingênuos. Em que pese a equipe técnica ser de fundamental importância, é importante também não assumir que servidores e funcionários de carreira terão isenção total frente a convicções político-partidárias pessoais.

Os mecanismos de fortalecimento mencionados acima ganham importância, também, sob essa perspectiva.

Assim como acontece com outros temas que, muito embora não tratem de convicções políticas, precisam com elas conviver, as agências reguladoras podem não ter se tornado núcleos técnicos protegidos das intervenções políticas, contudo, eliminá-las da nossa arquitetura institucional seria ainda mais desastroso. Essa é a percepção dos atores atuantes no ambiente regulatório dos transportes e mobilidade consultados na pesquisa.

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[1] Carlos Ari Sundfeld fez a “denúncia” em primeira mão no artigo Agências reguladoras estão em risco em São Paulo, publicado em 18/08/2020 no Jota corroborado por Pedro Dutra no artigo Novo Regresso Regulatório, publicado em 27/08/2020.

[2] PL 529/2020: “Artigo. 36.Os processos a serem submetidos à deliberação das diretorias colegiadas das agências reguladoras estaduais que contenham matéria que possa gerar encargo, ônus financeiro ou obrigação ao Estado de São Paulo deverão ser previamente submetidos à avaliação do Poder Concedente, bem como das Secretarias da Fazenda e Planejamento e de Projetos, Orçamento e Gestão. Parágrafo único – O descumprimento do disposto no “caput” deste artigo, sem prejuízo das previsões da lei penal e da lei de improbidade administrativa, será causa de perda do mandato de Diretor.”

[3] Ver mais em: Laurenz Ennser-Jedenastik, The Politicization of Regulatory Agencies: Between Partisan Influence and Formal Independence, Journal of Public Administration Research and Theory, Volume 26, Issue 3, July 2016, Pages 507–518, https://doi.org/10.1093/jopart/muv022

[4] Nesse mesmo fórum foi aprovado pela Plenária da I Jornada de Direito Administrativo o enunciado 25, que reforça a autonomia das agências: “a ausência de tutela a que se refere o art. 3º, caput, da Lei 13.848/2019 impede a interposição de recurso hierárquico impróprio contra decisões finais proferidas pela diretoria colegiada das agências reguladoras, ressalvados os casos de previsão legal expressa e assegurada, em todo caso, a apreciação judicial, em atenção ao disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.”

[5] A pesquisa  “Processo de nomeação de dirigentes de agências reguladoras: uma análise descritiva” da FGV abordou esse tema em profundidade. Para o relatório, acessar: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/24882 , último acesso em 11.09.2020.

[6] Correa, P., Melo, M., Mueller, B. and Pereira, C. (2019), Political interference and regulatory resilience in Brazil. Regulation & Governance, 13: 540-560. doi:10.1111/rego.12274.

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