WILLIAM DO VAL e DOMINGUES JÚNIOR, Jota
Desde a década de 90, nosso judiciário vem experimentando um gradual avanço em seu sistema de precedentes judiciais. Este louvável processo tem como principias objetivos o incremento da segurança jurídica, bem como, a economia de tempo para os litigantes e de recursos para o poder judiciário.
Confirmando este esforço, o artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015 passou a conferir força normativa a diversas formas de decisões proferidas pelos tribunais superiores, como as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em controle concentrado de constitucionalidade, os acórdãos decorrentes de julgamentos de recursos extraordinário e especial repetitivos, bem como, os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em matéria infraconstitucional.
Todavia, para o bom funcionamento de qualquer sistema, é necessário que os seus operadores compreendam seus elementos e sua dinâmica interna.
De acordo com o Dicionário Aurélio, um sistema é uma “disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como estrutura organizada”. Quando bem integrados todos seus elementos, podemos afirmar que o sistema funcionará em sinergia.
Deste modo, se considerarmos que em um sistema de precedentes suas partes ou elementos são as decisões com força normativa, para seu funcionamento em sinergia, deverá necessariamente haver coerência entre estas decisões, garantindo assim segurança jurídica aos litigantes e praticidade aos juízes.
Diante desta visão sistêmica, vale a pena analisar o caso que deu origem ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 163.334, julgado em dezembro do ano passado pelo STF[1] que, na melhor das hipóteses, pode ser encarado como uma prova da imaturidade do nosso sistema de precedentes.
O referido Recurso Ordinário referia-se a um pedido de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina tendo como paciente dois empresários que como proprietários de um comércio varejista deixaram de recolher o ICMS devido em alguns dos períodos de apuração dos anos de 2008, 2009 e 2010.
O detalhe do caso, no entanto, estava no fato de que o ICMS não recolhido pela empresa contribuinte é o devido pela sua operação própria, bem como, pela circunstância de que o tributo foi regularmente destacado e declarado nas obrigações acessórias estaduais.
Dado deste cenário, inicialmente ambos os empresários foram absolvidos sumariamente pelo juízo de primeiro grau que entendeu pela atipicidade da conduta. Todavia, o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público foi provido determinando o prosseguimento do processo criminal pela suposta prática do crime previsto no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990[2], conhecido como apropriação indébita tributária.
Desta feita, o caso passou a ser analisado pelo STJ que por meio do relator do caso, Ministro Rogério Schietti Cruz, propôs que o feito fosse analisado pela Terceira Seção, uma vez que, havia constante divergência entre a Quinta e da Sexta Turma, bem como, divergência interna nesta.
Da análise dos precedentes de ambas as turmas o que se tinha era o seguinte: a Sexta Turma diferenciava os casos de não recolhimento do ICMS devido na operação própria daqueles decorrentes da condição de substituto tributário do devedor.
Enquanto nos casos onde o devedor não havia recolhido o ICMS ST era firme o posicionamento da turma pelo cometimento do crime, nos casos onde o débito era referente ao ICMS devido na operação própria, havia o entendimento prevalecente na turma de que o caso era de mero inadimplemento fiscal.
As únicas exceções a este entendimento eram oriundas de decisões monocráticas proferidas pelo ministro Antônio Saldanha Palheiro. Por sua vez, a Quinta Turma entendia que tal diferenciação era prescindível, considerando assim, que em ambos os casos, estaríamos diante do crime de apropriação indébita tributária.
Naturalmente, como na Sexta Turma havia divergência entre os ministros, o julgamento do caso na Terceira Seção não poderia ser outro que não, a prevalência do entendimento firmado pela Quinta Turma. Ou seja, o não recolhimento de valores declarados a título de ICMS devido na operação própria do contribuinte configura a conduta típica prevista no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.
Todavia, do exame dos votos proferidos pelos Ministros do STJ quando da análise do Habeas Corpus nº 399.109, um importante precedente do tribunal foi sumariamente ignorado. Trata-se da Súmula 430[3] do STJ que dispõe que o inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.
Outrossim, o próprio STJ, por meio de sua Primeira Seção, entende não ser possível a responsabilização dos sócios-gerentes nos casos de mero inadimplemento, com fulcro no art. 135, III do Código Tributário Nacional. Isto é, quando da fixação da Súmula 430, o STJ firmou seu posicionamento no sentido de que o não recolhimento da obrigação tributária não constitui ilícito por parte da pessoa física.
Ademais, antes mesmo da fixação da Súmula 430, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.101.728/SP, sujeito ao regime do art. 543-C do CPC/1973, foi firmada pela Primeira Seção a tese do Tema n° 97[4], que dispõe de maneira ainda mais clara o referido entendimento. Senão vejamos a um importante trecho da decisão proferida pelo Ministro Teori Zavasck nesta oportunidade:
(…) 3. No que se refere à responsabilidade dos sócios, todavia, têm razão os recorrentes. Conforme jurisprudência pacificada nesta Corte, para que se viabilize a responsabilização patrimonial do sócio na execução fiscal, é indispensável que esteja presente uma das situações caracterizadoras da responsabilidade subsidiária do terceiro pela dívida do executado, nos moldes das hipóteses previstas no art. 135 do CTN. A simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta essa responsabilidade subsidiária dos sócios. (…)
(Resp 1.101.728/SP, rel. Min. Teori Zavascki, 1ª Seção, julgado em 11.03.2009 DJe 23/03/2009)
Não obstante tais considerações, quando da leitura dos votos proferidos no julgamento Habeas Corpus nº 399.109 pelo STJ, não é feita qualquer menção a este importante precedente do próprio tribunal. Nem mesmo no voto perdedor proferido pela Ministra Maria Thereza fez qualquer referência à Sumula 430 ou a tese fixada no Tema 97, tampouco, os ministros que proferiram os votos vencedores enfrentaram o tema.
O que se quer dizer com isto é que, não há qualquer impedimento para que o entendimento da Primeira Turma do STJ fosse levado à obsolescência diante do entendimento da Terceira Turma e agora também do STF.
Este é um processo absolutamente natural nos sistemas de precedentes[5]. O que não é condizente com este sistema (ou qualquer outro) é que os elementos já existentes, no caso decisões com força normativa, sejam absolutamente ignorados no momento da inserção de um novo componente.
Diante deste equívoco, naturalmente estamos diante da existência de elementos que não se compatibilizam dentro de um mesmo sistema, levando a inexorável quebra de sua sinergia.
Em outras palavras, para se defender a atipicidade do não recolhimento do ICMS nas operações próprias, é imprescindível que se leve em consideração a compatibilidade deste posicionamento com o precedente já estabelecido no sistema.
Por outro lado, mais indispensável ainda, é que uma vez firmado entendimento contrário, o precedente já estabelecido seja enfrentado, inclusive para que seja proposto seu expurgo ou adaptação à nova realidade sistêmica.
[1] Como será visto, não é objetivo deste artigo analisar a correção da decisão do STF, mas sim o aspecto relativo a necessidade de observação de precedente relacionado.
[2] Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
(…)
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
[3] Súmula 430 do STJ: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente. DJe 13.5.2010. Rel. Min. Luiz Fux.
[4] Tema n°97: A simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta a responsabilidade subsidiária do sócio, prevista no art. 135 do CTN. É indispensável, para tanto, que tenha agido com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa. DJe 23.3.2009. Rel. Min. Teori Albino Zavascki.
[5] “(…)Como a revogação do precedente significa a admissão de que a tese nele enunciada – vigente até o momento da decisão revogadora – estava equivocada ou se tornou incompatível com os novos valores ou com o próprio direito (…)” (MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia temporal da revogação da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v 77, n. 3, p. 223-248, jul./set. 2011).
WILLIAM DO VAL DOMINGUES JÚNIOR – Mestrando em Direito no programa de Mestrado Profissional da FGV Direito SP, advogado, pós-graduado em Direito Tributário pela PUC/MG, contador pela UFMG e consultor tributário no Neves & Battendieri Advogados Associados.
O sistema de precedentes brasileiro entendido como sistema: análise de caso
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