Vale a pena aumentar a concorrência de que forma?
Os efeitos da concorrência fraudada sobre o bem-estar
Toda vez que se fala em ter mais concorrência no mercado automaticamente se pensa em ter mais players no mercado. O raciocínio de que “quanto mais ofertantes melhor” é usualmente intrínseco a qualquer análise concorrencial. O Guia de análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, por exemplo, destaca que um “reduzido número de empresas” no mercado seria um dos fatores importantes a tornar “maior a probabilidade de que as empresas exerçam coordenadamente poder de mercado”. Um corolário disso é que “políticas” que permitam ampliar o número de concorrentes no mercado são positivas para a concorrência.
Mas e quando o número de concorrentes se amplia em função da omissão do Estado em cobrar e coletar efetivamente tributos e/ou realizar o enforcement de uma regulação? Ou seja, quando os “beneficiários” da omissão estatal se tornam capazes de entrar e/ou se manter no mercado de forma artificial.
A sobrevivência destes players pode estar ocorrendo por meio de uma competitividade espúria, reduzindo custos de forma a serem capazes de fazer preços inferiores aos praticados pelos players que pagam seus tributos e/ou cumprem a regulação. A questão relevante é: vale a pena aumentar a concorrência desta forma?
Há duas máximas em defesa da concorrência que nos dão uma pista sobre a resposta. Primeiro, a concorrência deve ser considerada como um meio e não um fim em si próprio para uma economia mais eficiente. Assim, ter mais ofertantes e, portanto, mais concorrência, não resultará em mais eficiência se os agentes adicionais no mercado sobrevivem às custas de sonegação fiscal e/ou descumprimento da regulação.
A segunda máxima é que cabe defender a concorrência e não o(s) concorrente(s). Nesse caso, cabe defender a concorrência baseada em seus méritos e não concorrentes artificialmente turbinados por descumprirem suas obrigações tributárias e/ou regulatórias.
Massimo Motta (2005), em seu importante livro texto sobre a economia da política de concorrência, destaca que o principal mecanismo pelo qual a concorrência gera ganhos de bem-estar é por meio de um processo Darwiniano de seleção das firmas mais eficientes: “Em uma indústria onde existem empresas mais e menos eficientes, a concorrência forçará as menos eficientes a saírem do mercado, fazendo com que o bem estar aumente porque tudo passa a ser produzido a um custo menor”.
Assim, se o processo de concorrência for fraudado no sentido em que não são as empresas mais eficientes que ganham participação de mercado, mas sim as que mais sonegam e/ou as que melhor conseguem evadir a regulação, aquele efeito positivo sobre o bem-estar desaparece. Ao contrário, se a eficiência da empresa estiver negativamente correlacionada com a sua propensão a sonegar e/ou descumprir a regulação, o processo de concorrência por tais meios resulta na seleção das firmas menos eficientes.
Aqui é fundamental garantir que haverá a devida distinção entre o devedor eventual, situação a que todos estão sujeitos, o reiterado, que está com problemas financeiros recorrentes, mas que a sonegação não constitui parte de sua estratégia de inserção no mercado e o devedor contumaz, que utiliza a sonegação como modelo de negócio. É apenas sobre este último que se deve concentrar as atenções.
O Infrator Racional
Gary Becker (1969) destaca que criminosos ou infratores o são porque em uma análise custo-benefício concluem que terão mais benefícios do que custos. Seria um “criminoso racional” realizando o mesmo cálculo que o homus economicus realiza enquanto consumidor, empresário, investidor, etc… Assim, antes de sonegarem ou descumprirem a regulação para adquirir vantagens competitivas espúrias, os infratores potenciais avaliam benefícios e custos esperados da infração para decidirem se vão cometê-la. Basicamente, o infrator potencial neutro ao risco analisa a seguinte equação, em valores esperados, para avaliar se o crime compensa:
Variação do Lucro (Benefício Esperado da Infração) ? Probabilidade de ser pego * Penalidade (Custo Esperado da Infração) (1)
No caso de sonegação e evasão da regulação, a probabilidade de ser pego depende, respectivamente, da fiscalização tributária e do enforcement dos reguladores. Quanto menor a capacidade de fiscalização do Estado, menor a probabilidade de ser pego e mais provável que a desigualdade acima se verifique e a infração compense. Multas pequenas e/ou penalidades fracas associadas a um sistema judiciário disfuncional com longos períodos de espera para julgamento e cumprimento das sentenças, como o do Brasil, também reduzem o custo esperado da infração.
No limite, é possível que a competitividade espúria gerada por sonegação e/ou descumprimento da regulação façam parte do próprio modelo de negócios da empresa, que é o caso do devedor contumaz. Assim, o cálculo acerca da equação acima pode ter sido realizado antes mesmo de a empresa entrar no mercado: ela entra já contando na vantagem competitiva espúria de não pagar tributos ou não cumprir a regulação. É possível até que, dada a sua eficiência intrínseca, ela nem teria entrado no mercado se não contasse com esta vantagem.
Os benefícios do “infrator racional“ em sonegar e/ou descumprir regulações serão tão maiores quanto maiores os estoques de cargas tributária e regulatória existentes pois a variação do lucro no lado esquerdo da equação “1” são maiores.
Sendo assim uma parte da agenda de correção das distorções concorrenciais geradas por sonegação fiscal e/ou descumprimento das regulações diz respeito a reduzir as cargas tributária e/ou regulatória do país.
Nesse contexto, é conhecida a curva de Laffer da tributação em forma de “U” invertido: quando a carga tributária é baixa, incrementos desta mesma carga devem aumentar a arrecadação. Já quando temos incrementos a partir de uma carga já elevada, a arrecadação deve cair. Se substituirmos a arrecadação por bem-estar, podemos ter um mesmo tipo de curva como esta para a regulação.
Assumindo que as regulações existentes são sempre eficientes, se vistas de forma isolada, podemos dizer que sua eficácia na margem vai caindo e pode se tornar negativa quando já temos um estoque regulatório muito amplo. Simplesmente muitos recursos da empresa vão crescentemente sendo devotados para o cumprimento das funções regulatórias e não para o seu core business, qual seja, produzir bens ou serviços. Assim, teríamos uma espécie de “curva de Laffer regulatória” em que os benefícios de cada regulação a mais vão se diluindo, podendo tornarem-se negativos, tal como mostrado no gráfico a seguir tirado do relatório da Agência para o Crescimento Sueca.
Como resolver o problema?
O art. 146A da Constituição Federal define que lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. O dispositivo, no entanto, ainda não foi regulamentado.
O Projeto de Lei do Senado n° 284, de 2017, da Senadora Ana Amélia, constitui uma proposição que influencia na probabilidade de ser pego e na redução do benefício em sonegar ao aumentar o custo de fazê-lo. Ou seja, este projeto, se tiver implementação adequada, tem o condão de alterar a decisão dos infratores potenciais para “não sonegar”, alterando tanto o lado esquerdo da equação (1) acima -os benefícios da infração para o infrator- como uma parte do lado direito -a probabilidade de ser pego-.
O quadro abaixo sumaria os principais pontos do art. 1º do projeto e seus impactos sobre a equação do “infrator racional”. Os incisos I, II, III IV e V do art. 1º aumentam a probabilidade do sonegador contumaz ser pego. Os incisos VI e VII dificultam a própria realização da fraude fiscal, o que reduz o benefício esperado do infrator potencial. Se esta dificuldade maior apenas aumentar o custo de fraudar, isto equivale a uma redução do benefício esperado da sonegação. Se inviabilizar a sonegação, o benefício da sonegação, o lado esquerdo da equação (1), se torna igual a zero.
O Projeto de Lei nº 1.646, de 2019, do Poder Executivo também trata da mesma questão, deixando claro em seu art. 2º que o devedor contumaz é aquele cujo modelo de negócios está estruturado para sonegar, destacando que devem haver indícios de que a pessoa jurídica foi “constituída para a prática de fraude fiscal estruturada” ou “participe de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais”.
Nesta proposição, prevê-se incremento das penalidades do devedor contumaz, afetando o lado esquerdo da equação (1) acima, com possibilidade prevista no art. 3º de “I – cancelamento do cadastro fiscal do contribuinte pessoa jurídica ou equivalente; e II- impedimento de fruição de quaisquer benefícios fiscais, pelo prazo de dez anos, inclusive de adesão a parcelamentos, de concessão de remissão ou de anistia e de utilização de créditos de prejuízo fiscal ou de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL para a quitação de tributos”.
Uma outra forma de coibir esta prática seria o CADE considerá-la como uma conduta potencialmente anticompetitiva quando ela tivesse um efeito significativo sobre o mercado. Nesse caso, o CADE utilizaria seu papel repressivo também para incrementar o lado esquerdo da equação (1). Seria considerada como uma infração à ordem econômica já que envolveria “falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência” conforme o inciso I do art. 36 da Lei 12.529, de 2011.
Note-se que esta não poderia ser considerada como uma conduta de preço predatório pois o infrator definitivamente reduz o seu próprio custo de forma artificial ao sonegar impostos e/ou burlar a regulação. Assim, a conduta seria caracterizada quando: I) o infrator sonega impostos e/ou burla a regulação; II) esta sonegação e/ou burla da regulação ocasiona (tem nexo causal) com a conquista de participação de mercado relevante, subtraída de players que não sonegam e/ou burlam a regulação.
Os critérios para a conquista de participação de mercado relevante deveriam ser construídos pelo CADE de forma a evitar que qualquer sonegação ou movimento de burla da regulação acabem sendo trazidos para esta autarquia. Afinal, as responsabilidades principais de evitar sonegação e burla da regulação continuam sendo, respectivamente, da Secretaria da Receita Federal e do regulador.
Fonte: CÉSAR MATTOS/JOTA
Ligue para nós
55 21 3544-6444
Email
sindcomb@sindcomb.org.br